É inverno em Montauk: o céu cinzento e a atmosfera gélida e húmida do mês de fevereiro caem sobre a estação de comboios e fazem-se sentir, também, na praia. É este cenário inicial, um tanto melancólico, que nos convida a acompanhar o resto da longa, dirigida por Michel Gondry e escrita por Charlie Kaufman, em 2004.
Eternal sunshine of the spotless mind segue a história do casal Joel (Jim Carrey) e Clementine (Kate Winslet) que, após algum tempo de relacionamento, decidem apagar-se um ao outro de todas as memórias que construíram durante esse tempo, a fim de esquecerem, completamente, a outra pessoa. Assim, o enredo é ditado pelas memórias que Joel guarda desta relação, enquanto este as revisita no processo amargoso de eliminar todas as lembranças.
São vários os aspetos que me levam a crer que Eternal Sunshine é, não só a melhor obra de Gondry, mas também um dos melhores filmes que já tive oportunidade de assistir. Na verdade, é-me impossível arranjar algum aspeto que não me agrade no meio desta obra. Desde a atuação, à iluminação e à atenção e cuidado a todos os detalhes, toda a equipa trabalhou para entregar ao espectador a mais bonita história e obra cinematográfica.
É Jim Carrey quem representa o personagem principal, o introvertido e monótono Joel, e fá-lo de forma tão sensata e natural que nos leva a criar uma empatia com o personagem desde o início. Acredito que ver Carrey num registo completamente diferente daquilo a que estávamos habituados, pelos seus trabalhos anteriores, intensifica ainda mais o gosto por vê-lo desempenhar este papel. Também Kate Winslet faz um trabalho insigne no seu retrato da excêntrica e carismática Clementine. A atuação vulnerável de Kate deixa qualquer um rendido e completamente submerso na abordagem não convencional do quotidiano da sua personagem, tão real e tão crua.
Já o realizador aproveitou-se da personalidade irreverente de Clementine, bem como da sua obsessão pela mudança regular da cor de cabelo, para situar o espectador no meio de todas as memórias que Joel percorre. Este é, para mim, o detalhe mais bonito e subtil de todo o filme, por ter um simbolismo próprio para a personagem (a expressão externa da personalidade da mesma e representação do seu espírito livre), mas por desempenhar, também, um papel simbólico crucial na narrativa. Clementine chega às nossas telas, em diferentes momentos do filme, com diferentes cores de cabelo – azul, verde, laranja e vermelho –, que representam diversas situações do relacionamento do casal, desde os momentos de puro clímax, até ao momento de decadência e esquecimento da mesma.
No entanto, não é só a caracterização e atuação que merecem um lugar de destaque, também o trabalho de iluminação que foi criado ao longo de todo o filme é brilhante. Ellen Kuras e o próprio diretor, Michael Gondry, trabalharam em colaboração para estabelecer uma estética única e visualmente cativante, a partir da iluminação cuidadosamente planeada. Esta desempenha um papel fundamental em evocar a atmosfera emocional e visualmente rica da história, ajudando a transmitir as nuances das emoções sentidas pelos personagens ao longo de todo o filme e a criar uma experiência cinematográfica inigualável para quem o assiste.
Um exemplo disso é a utilização de uma iluminação mais quente, natural e equilibrada, bem como os tons amarelos e avermelhados, usados para as cenas envolvidas pela felicidade e o amor – as memórias do relacionamento do casal, que transmitem automaticamente uma sensação de intimidade e calor. Por outro lado, em cenas mais melancólicas e perturbadoras, normalmente, quando o protagonista é o foco principal ou nos momentos que as memórias se veem apagadas, somos embebidos tanto pela tristeza do mesmo como pelo tom azul e a iluminação fria, estilizada e dramática, que criam uma atmosfera mais sombria e desoladora, acentuando o estado de espírito da personagem.
Esta é uma história que não chega ao espectador numa forma convencional ou a que estamos habituados, na verdade, a forma como Charlie Kaufman desenvolveu o guião foi, no minino, genial e tão singular que torna uma simples sessão de cinema numa experiência única para o espectador. Kaufman criou uma narrativa que não é desenvolvida de maneira comum, mas sim de forma desordeira e subjetiva, onde nos são apresentadas cenas iniciais que só serão compreendidas ao longo do filme, causando desta forma, um sentimento de confusão e ansiedade que duram até ao final deste. Assim, as cenas surgem como peças de um puzzle que o espectador é convidado a construir para perceber esta história que une o amor e a memória.
É esta narrativa incrível que, ao lado da banda sonora criada pelo já conhecido Jon Brion, leva o espectador a sentir de forma tão íntima e pessoal esta obra. Eternal Sunshine pode parecer, em alguns momentos, um tanto solitário, uma vez que o próprio filme se entrega à tristeza e melancolia que lhe é intrínseca. Todavia, vivemos, juntamente com as personagens, numa montanha-russa de angústia e solitude e, por outro lado de ternura e conforto, que nos faz revisitar, numa viagem nostálgica, memórias que pareciam guardadas na gaveta mais escondida da mente.
Assim, não nos colocamos apenas no labirinto de memórias do personagem principal, mas partimos também num caminho de análise pessoal. É esta a magia que este filme acarreta, esta trivialidade em nos transportar até ao nosso íntimo ao mesmo tempo que vivemos o romance de Joel e Clementine.
Título original: Eternal Sunshine of the Spotless Mind
Realização: Michel Gondry
Argumento: Charlie Kaufman
Elenco: Jim Carrey, Kate Winslet, Tom Wilkinson
Estados Unidos
2004