Mulheres Que Correm é o primeiro EP de Bea Duarte, lançado em julho de 2023. Bea Duarte é uma cantora e multi-instrumentalista brasileira, cujas composições têm vindo a chamar a atenção. Para compreender as suas letras, a própria avisa que é preciso ter alguns conhecimentos de literatura e uma boa noção de cultura geral.

TV Cultura – UOL

Mulheres Que Correm começa com um pequeno prólogo, “Chamado”. Nestes curtos 27 segundos, já dá para adivinhar que tipo de sonoridade se poderá encontrar em Mulheres Que Correm. Assim como dá para adivinhar que ao longo do EP estarão presentes vocalizes e backing vocals impressionantes. “Chamado”, à imitação de um chamamento, rouba a atenção do ouvinte, deixando-o encantado pela calma transmitida e criando uma atmosfera envolvente.

Graças a uma agradável transição, é-se levado para a canção com um instrumental pop ambiental forte e uma letra que exalta o universo feminino. “Mulheres Que Correm” dá assim nome ao projeto, numa clara referência ao livro Mulheres Que Correm Com Os Lobos de Clarissa Pinkola Estés, onde é explorado o arquétipo da Mulher Selvagem.

A terceira faixa chama-se “Lilith”. Esta canção está repleta de um grande misticismo, desde a letra com um refrão memorável, até ao seu posicionamento no alinhamento do EP. É a terceira música de Mulheres Que Correm, sendo que o “três” é um número da sorte, de acordo com a numerologia. Lilith é uma figura presente em muitas mitologias. De acordo com a lenda mais popular, ela foi a primeira mulher a existir, contemporânea de Adão e, ao recusar ser vista como inferior ao marido, saiu do Jardim de Éden, tornando-se num demónio.

Nos últimos três séculos, a figura de Lilith tem vindo a ser usada nas artes para simbolizar a admiração pela sensualidade feminina, para além de se ter tornado numa imagem presente em manifestações pela igualdade de género. A artista usa esta reinvenção de Lilith na letra, vê-a como uma mulher mal compreendida e, desta forma, discute sobre o feminismo.

Do “estrondo” que é “Lilith”, passa-se então para “Ignorância”. O intuito desta canção é de criticar: criticar quem prefere ficar preso na ignorância e não abrir os olhos para os grandes problemas da atualidade; criticar a manipulação que os políticos e os media podem exercer sobre as pessoas, mostrando apenas aquilo que querem que o público saiba. Porém, mesmo com uma letra impactante, “Ignorância” parece ser a música “mais fraca” do EP. Ocorreu uma mudança total do estilo musical, do pop foi-se para um ritmo latino-americano – uma troca que pareceu um tanto sem nexo e em discordância com as restantes faixas.

Em “Mar” regressa-se ao tipo de som que já tinha sido estabelecido nas primeiras três faixas. É talvez a melhor de todo o projeto: uma canção emotiva, com uma composição mais complexa do que aquilo que possa parecer à primeira escuta. A voz de Bea Duarte está em muito maior destaque nesta canção: Bea mostrou aquilo que vale, especialmente na última estrofe em que atinge a nota mais aguda de todo o EP, acompanhada por belíssimos vocais de fundo.

Para complementar o seu canto, tem-se um piano que, ora parece ser tocado de uma forma calma, ora agressivamente… A fazer lembrar o mar, durante uma tempestade. O poema cantado, à semelhança do instrumental, também tem presentes metáforas com o mar: fala sobre as comparações que a cantautora ouve, sendo que Bea e quem comenta sobre ela, nem sequer estão em fases da vida semelhantes, nem passam pelos mesmos problemas… Ou, melhor dizendo, “nem estão no mesmo mar”.

Por último, temos “Culpa”, que juntamente com “Mar”, tem uma das composições mais intrigantes do projeto. O instrumental e a parte lírica estão em perfeita comunhão para transmitir uma mensagem cheia de camadas. É sobre a aceitação das nossas próprias diferenças e a recusa de perder o “verdadeiro eu” para se encaixar.

Esta mensagem pode ser aplicada às mais diversas situações: no atrito de ideologias intergerações, na exclusão social que pessoas neurodivergentes e as pertencentes à comunidade LGBTQ+ passam… No entanto, é mais do que explícito que “Culpa” censura a forma como muitos ensinamentos religiosos são distorcidos e usados apenas para incitar o ódio ao outro. A música hipnotiza o ouvinte desde as notas de guitarra iniciais, até ao acorde de órgão e barulho de sino de igreja finais.

Nestas seis faixas, é-se levado numa viagem espiritual épica onde se refletem temas atuais importantes. O único ponto negativo a apresentar é a troca relativamente rápida de géneros entre as faixas deste EP; mesmo isto podendo ser uma prova da versatilidade da artista. Como também pode criar a impressão de que as faixas não estão devidamente interligadas, em termos sonoros. Bea Duarte é um nome promissor a memorizar. Ainda se irá ouvir muito a sua voz hipnotizante por aí.