No último dia do Festival Utopia, o Espaço Vita contou com a presença de Capicua e Raquel Marinho num podcast ao vivo. Com o projeto “O Poema Ensina a Cair”, Raquel Marinho pretende divulgar a poesia e mantê-la viva, através de entrevistas com figuras públicas sobre os seus poemas favoritos e o seu percurso artístico.
Capicua começou por afirmar que vê a escrita como um reencontro de emoções, mas que a música não cumpre apenas um papel terapêutico, também influencia e pode ser um motor de progresso. A artista cresceu a ouvir os cantores de abril, como José Mário Branco e José Afonso, que desde cedo lhe despertaram o gosto pela mensagem política transmitida pela música.
Na sua adolescência, conheceu o rap e apaixonou-se pela ideia de “usar as palavras como um megafone”. Assim, percebeu que falar sobre o que lhe causa preocupação inspira as pessoas a serem mais livres e conscientes do que as rodeia, acreditando que a mobilização traz revolução, um dos principais princípios da sua arte.
Na sessão, abordou-se o alarmante aumento dos casos de violência doméstica em Portugal, que persiste apesar das campanhas de sensibilização e políticas adotadas. Destacou que a raiz do problema está profundamente enraizada na estrutura patriarcal, que perpetua a ideia de posse e controlo sobre as mulheres. Criticou-se também a romantização do ciúme, frequentemente normalizada, alimentando ciclos de opressão e violência.
Orgulhosamente feminista, Capicua escreve letras onde demonstra uma visão crítica e transformadora, como, por exemplo, na reescrita da música “Que força É Essa”, da autoria de Sérgio Godinho. Lançada em 2024, “Que Força É Essa Amiga” desconstrói a pressão social imposta às mulheres, abordando temas como o “mito” do instinto materno, o multitasking e a desigualdade salarial.
Apesar da paixão pela música, a literatura também ocupa um lugar de destaque na vida da cantora, especialmente a literatura infantil. Confessou que inicialmente foi estranho escrever livros para crianças por ser uma pessoa muito racional e prática, e afirmou ser difícil conectar-se com o mundo imaginário infantil.
Contudo, a sua experiência enquanto mãe contribuiu para o crescimento desta paixão, referindo todos os dias que as crianças nos obrigam a reparar nos pormenores, como o seu filho, Romeu. Com a maternidade começou a apreciar a beleza da simplicidade, o que se tornou um atalho para se relacionar com o seu lado poético. Hoje, já escreveu dois livros para os mais novos e deseja escrever mais devido ao seu encanto pela língua e à exploração de uma escrita menos tradicional e mais intuitiva.
Ainda sobre a maternidade, revelou que não há nada que nos prepara verdadeiramente para essa etapa, afirmando que por muito que se leia e estude, é entrar num mundo desconhecido. Acrescentou ainda uma frase que admira, “Ser mãe é aprender a nadar no primeiro mergulho”.
Para a rapper, o espírito criativo foi essencial no seu desenvolvimento pessoal e história. Recordou momentos da infância, nos anos oitenta, quando só queria vestir-se de cor-de-rosa e ser “pirosa”, como menciona na canção “Vayorken”. Mesmo enfrentando a oposição da mãe, o cor-de-rosa mantém-se a sua cor favorita até hoje como um reflexo do seu otimismo e energia contagiante.
No momento final, foi aberta a sessão para perguntas da audiência. A primeira questão focou-se na representação artística em Portugal. Em resposta, Capicua sublinhou a importância de valorizar artistas queer e mulheres, frequentemente excluídas dos cartazes de festivais. Reforçou que o público tem poder enquanto consumidor e pode revoltar-se, optando por não apoiar iniciativas que perpetuem essas desigualdades.
O evento não só destacou o percurso inspirador de Capicua, como também trouxe à tona questões relevantes sobre representatividade, inclusão e o papel ativo do público na transformação do panorama cultural. A artista deixou claro que a arte é tanto uma ferramenta de expressão pessoal como de mudança social, reforçando a necessidade de dar voz a quem muitas vezes permanece à margem.