Ontem o Festival Literário Utopia abrigou uma entrevista de vida a Rodrigo Guedes de Carvalho. Apesar de entrar nas casas portuguesas como jornalista, a conversa conduzida por Maria João Costa focou-se na sua carreira como escritor, motivada pelo recente lançamento de Matarás Um Culpado e Dois Inocentes.
A sessão abriu com uma discussão sobre o novo romance, que relata a história de quatro irmãs: três desaparecidas e uma morta. Gondarém, durante Abril de 1974, é o pano de fundo da obra, que serve de desfecho ao livro As Cinco Mães de Serafim, que também pode ser lida isolada.
Rodrigo Guedes de Carvalho começou por comentar uma crítica apontada frequentemente a As Cinco Mães de Serafim: o facto do livro deixar demasiadas coisas em aberto. Os comentários fomentaram a escrita do lançamento mais recente, como uma espécie de sequela, mas levantou um problema: “Não queria que o leitor que só entrasse neste livro se sentisse perdido”. Cria-se então o desafio de entregar o desfecho ansiado, sem complicar a leitura para quem se debruce apenas sobre este lançamento. Tal foi feito com um resumo inicial para situar os novos leitores.
A conversa caminhou de seguida para os nomes das personagens, que têm a coincidência engraçada de começarem todos com ‘Be’, algo que o escritor relaciona em tom de piada com o poster dos Beatles que tem no escritório. “Eu não gosto de escrever sobre temas”, acrescentou. “Começo sempre por pensar em pessoas – sou apaixonado por pessoas – e gosto de as desenhar, de as construir, e depois vou ter que lhes arranjar uma história para elas viverem”.
Discutiu também o hábito de dar sempre dois nomes às personagens, algo que nasce como uma homenagem à sua avó. “Ela tratou me toda a vida por Rodrigo Manuel”, por isso, sempre associou esta prática a um sentimento de ternura. A musicalidade é também um elemento importante quando se trata de nomear as personagens. O escritor relacionou a importância que dá aos nomes com uma “panca dos escritores” partilhada com Saramago. “Faz parte de uma parte quase física da personagem, o nome”, assumiu. O jornalista acabou por mencionar não gostar de autores que associam apenas siglas às suas personagens “não consigo ligar-me a um S”.
Rodrigo Guedes de Carvalho cresceu fascinado pelo mundo dos adultos, sendo esse o seu principal entretenimento até aos nove anos. Com o tempo, desenvolveu uma perspetiva única sobre as relações familiares, os membros de uma família, que antes de qualquer rótulo são pessoas. A descoberta de que a família é algo que não escolhemos fascinou-o desde cedo. Assim, especializou-se na escrita sobre dinâmicas familiares. Também explicou que gosta de se focar em famílias nortenhas, pois, apesar de viver em Lisboa há 42 anos, a sua terra natal é o Porto e reparou que sofre “de uma nortandade”.
Outro aspeto essencial no método de trabalho de Guedes de Carvalho é a estruturação. Os seus romances começam com um esquema inicial, que organiza a narrativa. “Encaro a escrita como um trabalho”, afirmou, comparando-a a um edifício que exige “engenharia e arquitetura”. Um dos seus passos é escrever o final na fase inicial do processo. Para o autor, o desfecho deve ser mais impactante do que o início. “Preciso de uma escrita poética, sensível e forte, mas que tenha uma história”, confessou, afirmando-se como leitor antes de ser escritor.
Rodrigo Guedes de Carvalho faz questão de narrar os seus próprios audiolivros. “Não queria, nunca, nenhum romance meu lido por alguém que não fosse eu”, justificou. Comparou esta experiência à tradução literária, destacando que ambos os processos transformam o livro, alterando a forma como é experienciado pelo público.
A carreira musical, que descreve como um “brinquedo”, é outro dos seus interesses. As letras das músicas que canta são textos que, por não se enquadrarem nos romances, acabam por ganhar uma nova vida na música. No entanto, não chama “poemas” às suas letras, por respeito à poesia.
A face de jornalista não podia ser ignorada. Guedes de Carvalho revelou que, ao contrário do que maior parte das pessoas pensa, antes de ser jornalista, era escritor. O curso de Comunicação Social surgiu como resposta à pergunta “O que é que vais fazer?”. Entrou na universidade com a mente posta em publicidade, pela vertente de copywriting, que alimentava o interesse pela escrita criativa. No final do curso, “aconteceu a vida”: as empresas de publicidade a que se tinha candidatado não responderam.
No entanto, a colega de curso Cândida Pinto tinha-se inscrito e a Rodrigo Guedes de Carvalho num curso do centro de formação da RTP. “Fui a uma discoteca à procura da publicidade, e ela não apareceu, mas estava lá o jornalismo”. É assim que o orador descreve o acaso, mas admite estar contente com o rumo que a vida tomou: “sou jornalista com muito orgulho”.
Num último momento, os microfones viraram-se para as perguntas da audiência. A primeira participação questionou para quando estaria uma primeira tradução dos seus livros, ao que Guedes de Carvalho revelou uma tradução de O Pianista do Hotel para árabe e a sua vontade de ter obras traduzidas para castelhano. O segundo interveniente foi um estudante de Ciências da Comunicação, que teve a oportunidade de receber conselhos do jornalista. Foi salientada a importância da leitura na adquirição de vocabulário e a necessidade de ser diferente e curioso. Por último, foi questionado sobre o impacto da inteligência artificial para a escrita, ao que respondeu que espera que na ficção seja pouco, advertindo para o perigo da massificação de gosto.