O escritor focou o seu discurso em aspetos da sociedade atual que urge serem resolvidos.

Na tarde de domingo, a segunda edição do Festival Literário Utopia continuou a encher o Espaço Vita, em Braga. O autor e cronista português Gonçalo M. Tavares foi convidado a dar uma entrevista de vida, na qual expôs vários problemas da sociedade contemporânea que pessoalmente o comovem.

Ao contrário do que costuma acontecer numa entrevista, o moderador Afonso Borges, pediu a Tavares que começasse a falar não sobre os seus “primórdios”, mas sobre aquilo que o motiva a produzir literatura atualmente. Como primeiro motivo, o autor destacou o “empobrecimento da imaginação e da linguagem”. Preocupa-o que argumentos básicos consigam convencer a generalidade do público, lamentando que haja eleições vencidas por “pessoas que argumentam muito mal”.

ComUM | Joana Gomes

Gonçalo M. Tavares enfatizou ainda a necessidade de separar o autor do narrador e das personagens de um livro. “É ignorante criticar uma personagem racista numa obra de ficção e pensar que o autor é racista também”, salientou. Aliás, segundo interveio, “a literatura começa com o lobo mau”, dando o exemplo de que a história do Capuchinho Vermelho não faria sentido sem essa personagem.

No seguimento deste assunto, Tavares recordou que escrever ficção e escrever para um jornal são situações diferentes. Confessou que, se os adultos não têm capacidade defensiva relativamente a um livro, é sinal de que a educação está a falhar. “Posso ler o Mein Kampf 50 vezes, mas defendo-me”, realçou. Do mesmo modo, não acredita que as pessoas se tornem imediatamente boas como consequência de lerem livros “bonzinhos”.

A seletividade da inclusão foi um assunto igualmente criticado na sessão.. O autor questionou o público sobre a razão de não se ver pessoas cegas ou pobres, por exemplo, a serem convidadas para falar na televisão sobre algo que não seja os seus respetivos problemas. Sobre a “pobreza ser a maior das exclusões”, lamentou que a eutanásia ainda não tenha sido resolvida em Portugal por ser um “problema de pobres”, alertando para a “epidemia de suicídio na terceira idade”.

Como autor, a crescente falta de concentração foi também um assunto abordado. Gonçalo M. Tavares sublinhou uma frase que escreveu numa crónica: “A educação não é encher um balde, é acender um fogo”, “Ao interrompermos o nosso trabalho, não acendemos essa chama e a força para recomeçar torna-se um esforço maior”, acrescentou.

O orador destacou, ainda, que a forma de ver o trabalho (ou até o luto) como algo sagrado está a perder-se graças à nossa ligação com as tecnologias. Acrescentou que “quando aceitamos que nos interrompam estamos a dizer que o nosso trabalho não tem valor” e que “a leitura é hoje uma contracorrente revolucionária”.

Como combinado, foi apenas no final que o autor falou sobre as suas circunstâncias familiares. “Escrevo porque, em 1952, um conjunto de professores convenceu o meu avô que o meu pai tinha de continuar a estudar”, revelou. Recordou as iniciais dificuldades da família paterna e a extensa biblioteca com a qual, posteriormente, pôde crescer em casa.

A entrevista ficou concluída com uma reflexão em torno de temas levantados pelo público. “Todas as pessoas têm o dever de ter um projeto de vida. Distrairmo-nos não é um projeto de vida: é uma interrupção, um descanso”, confessou Gonçalo M. Tavares. O autor lamentou, ainda, que a sociedade ocidental esteja “tão obcecada com a duração da vida, que a maior parte das pessoas estão a morrer no hospital, fora de casa”. Sublinhou que uma percentagem reduzida morre com os familiares próximos e muitas rodeadas apenas por máquinas. “Morremos miseravelmente”, finalizou.