O ambiente no Espaço Vita não tardou a captar a atenção. O local, imerso no mistério, parecia retirado de um thriller, guardando segredos à espera de serem revelados, com a introdução à Mesa «Águas Profundas».
No dia 23 de novembro, o Festival Literário Utopia não se limitou apenas a um género literário, mas mergulhou nas suas sombras mais inquietantes. Com a moderação de Ana Daniela Soares, a sessão contou com três grandes autores: Pedro Boucherie Mendes, Camilla Grebe e Carmen Mola (Jorge Díaz Cortés).
Camilla Grebe, autora dos sucessos O Gelo Sob os Meus Pés e O Diário do Meu Desaparecimento, abordou o poder do thriller como uma exploração das profundezas da mente humana. Revela que o verdadeiro enredo reside tanto no mistério como nas motivações que impulsionam cada ação. Segundo a sueca, o género funciona como um espelho, refletindo os dilemas e fragilidades da sociedade.
Ao decorrer do debate, surgiu uma questão provocadora: Será que a mente feminina é mais criativa e interessante do que a dos autores masculinos neste universo? Apesar da premissa intrigante, todos os participantes discordaram. Camilla Grebe, de forma honesta, afirmou que não acredita haver alguma diferença entre os géneros no que toca à criatividade ou à qualidade da escrita. Em contrapartida, o jornalista e escritor Pedro Boucherie Mendes confessou a sua preferência por escritoras deste género, argumentando que existe “uma compreensão mais profunda e concreta do ser humano” na construção dos personagens.
Pedro Boucherie Mendes, autor de livros como O Agosto do Desassossego e Segredos de Família, afirma que neste tipo de literatura “nem tudo precisa de ser resolvido no final”. Para o jornalista, é quase aborrecido quando tudo termina bem, com o protagonista a sair ileso e todos os mistérios resolvidos. “A natureza humana também é feita de desistências”, afirmou. Propõe um olhar mais realista sobre as personagens e as narrativas. Para Mendes, o verdadeiro foco está sempre nas personagens, nas suas motivações e fraquezas que conferem alma à história.
Entre os destaques da Mesa «Águas Profundas», Carmen Mola, o pseudónimo coletivo dos escritores Jorge Díaz, Agustín Martínez e Antonio Mercero, ofereceu uma perspetiva singular sobre o processo criativo a “várias mãos”. Jorge Díaz Cortés revelou que a troca constante de ideias entre os três autores é o que confere aos livros de Carmen Mola a sua atmosfera imersiva e a capacidade de surpreender os leitores até à última página, exemplificadas em A Noiva Cigana e A Rede Púrpura. Num momento de descontração, Díaz desvendou o maior mistério por detrás da figura de Carmen Mola: o projeto começou como uma brincadeira entre amigos que desejavam desafiar as suas zonas de conforto.
Outro aspeto essencial para os escritores é o ritmo de um bom thriller. Acreditam que manter o leitor intrigado requer um controlo preciso da velocidade narrativa, alternando momentos de alta tensão com pausas para reflexão e revelações. Mendes destaca a ambiguidade, afirmando que “deve permitir várias interpretações da verdade, deixando o leitor na dúvida até as últimas páginas.” Para ele, o auge dessa literatura está na criação de anti-heróis complexos que desafiam a moralidade convencional. “Quando um escritor faz o leitor gostar do anti-herói e torcer por ele, temos um thriller realmente bem escrito”, sublinha o português.
Questionado pelo público sobre as mudanças trazidas pela tecnologia, o espanhol Jorge Díaz brincou com o uso da “desculpa do telemóvel ficar sem bateria”, que só pode ser usada uma vez. Já Mendes ironizou sobre os finais pouco convincentes de alguns thrillers mais antigos: “Há sempre aquele desfecho em que, de repente, uma velhinha com insónias às quatro da manhã via o assassino no Chiado e depois ia contar à polícia”. Apesar da evolução tecnológica, os três concordaram que o essencial é garantir que o leitor ou espectador não se sinta enganado, mantendo a autenticidade da história.
Seja no papel ou no ecrã, para os três autores, o thriller e a literatura policial devem desafiar, intrigar e respeitar a inteligência do público. No final, o thriller revela-se como uma jornada pela complexidade da mente humana e pela imprevisibilidade da vida. Afinal, o que é o thriller senão um espelho das nossas próprias inquietações e falhas, refletidas nas páginas e nas telas?