Em maio de 2024, a nova obra de Sean Baker ganhou o Palme D’Or no festival de Cannes. A vitória despertou imensa curiosidade sobre o motivo que levou o aclamado realizador finalmente chegar ao reconhecimento do mais alto nível. Após vários trabalhos dedicados à realidade precária da vida de trabalhadoras sexuais, terá Sean Baker finalmente conseguido a mestria sensibilista e técnica para criar a sua obra-prima?

O filme aborda a vida de Anora, uma trabalhadora sexual de Brooklyn, Nova York, que aspira subir de classe, tanto económica quanto social. Quando conhece Ivan, cliente do clube de strip em que trabalha e filho de uma família rica russa, Anora vê a oportunidade para tal e vai atrás do seu desejo.

A sequência inicial ambienta-nos perfeitamente no mundo de Anora, através de uma montagem imersiva de uma noite de trabalho da personagem. Apresenta o charme e senso de humor da protagonista, o esforço físico e mental que o emprego demanda. Após a montagem, conhecemos a rotina pós-trabalho, que revela o cansaço e a insatisfação que Anora sente, acentuando assim a complexidade da personagem.

Logo no começo, o filme cria uma ligação forte entre espetador e personagem – o que desperta interesse em conhecer a personagem melhor. Todavia, Sean Baker não vai muito além desta sequência inicial para demonstrar a vida e os desejos de Anora, tornando-a um pouco redundante. Tal não impede uma conexão com a personagem: aliás, o filme mantém o poder excecional de fazer simpatizar e sentir por Anora. Porém, para uma obra titulada com o seu nome, desaponta não ficar a conhecer um pouco sobre o que estimula a protagonista para além da frustração com o seu status socioeconómico.

No entanto, Anora não é uma personagem completamente vazia ou guiada somente por conceitos abstratos. Há densidade mais do que suficiente nela para conduzir a trama e fazer acreditar nos precursores e nas consequências da sua jornada. A história não a trata como uma caricatura: dá-lhe espaço para reagir e atuar como uma mulher real faria. É notório o facto do filme permitir-lhe mostrar raiva e ser não apologeticamente má – o que muitas vezes não é concebido a personagens femininas, mesmo depois de passarem por situações completamente degradantes e traumatizantes como a de Anora.

A jornada de Anora é colorida por todo um conjunto de personagens que elevam a trama e dão vida ao mundo. Através de um ensemble cativante, Sean Baker cria uma dinâmica de grupo divertida, que mantém o espetador entretido e envolvido, mesmo quando certas partes da história não convencem.

Grande razão para essa dinâmica funcionar são as performances excelentes do elenco, desde as mais cómicas às mais dramáticas. Karren Karagulian e Vache Tovmasyan intimidam o necessário como papel de guardas de Ivan, ao mesmo tempo que humorizam perfeitamente os momentos mais tumultuosos. Ivan, interpretado por Mark Eydelshteyn, reflete precisamente a ridicularidade de um jovem mimado e protegido pela bolha isoladora de um mundo sem consequências.

Mikey Madison (Anora) e Yura Borisov (Igor) são as performances que realmente hipnotizam. Madison traz a vivacidade que completa os fragmentos mais superficiais de Anora. Encanta desde oportunidades performativas grandiosas até às mais subtis, fazendo da personagem uma das mais impactantes do ano. Borisov pega num papel que, dado às mãos erradas, poderia aborrecer uma audiência. Apesar do pouco diálogo que tem, capta completamente a atenção ao conseguir transmitir perfeitamente os sentimentos de Igor através da sua linguagem corporal.

Sean Baker diverte e comove com o seu novo ‘reverso conto de fadas’. Impressiona com uma brilhante realização e compensa aquilo que ficou aquém por parte do roteiro. Traz à tela uma história envolvente sobre as consequências de casar com um “príncipe encantado contemporâneo” e ilustra a hostilidade social para com trabalhadoras sexuais, humanizando os seus desafios. Não criou a sua obra-prima, mas ofereceu ao cinema mais um trabalho entusiasmante e um dos melhores filmes do ano.