O sexto álbum de estúdio de Father John Misty, Mahashmashana, lançado em 22 de novembro de 2024, é uma obra que mergulha em temas como a mortalidade, a fragilidade da existência e a hipocrisia social. O título, uma anglicização da palavra sânscrita “mahāśmaśāna”, que significa “o grande crematório”, já sugere uma reflexão sobre o ciclo da vida e da morte.

Ward & Kweskin

A faixa-título abre o álbum com uma entrada grandiosa, estabelecendo o tom introspetivo e crítico que permeia toda a obra. O conceito de Mahashmashana é central aqui, a cremação simboliza a quebra do ciclo da reencarnação, e a música reflete sobre a fragilidade da vida e a inevitabilidade da morte. A música contrasta a beleza das mentiras com a dureza da realidade, destacando que a verdade “não é o tipo de coisa que se conta”.

A ironia está presente quando Josh Tillman, o homem por trás de Father John Misty, goza com a sua própria seriedade, sugerindo que apenas os cantores conseguem descrever essas revelações profundas. Tillman critica a hipocrisia contemporânea que serve para “enriquecer os imbecis”, enquanto explora os dois lados do “ato de criação”. A voz dele é melancolicamente bela, perfeita para o tom introspetivo do álbum.

Father John Misty – Bandcamp

“She Cleans Up” começa com uma reflexão sobre Maria Madalena e o que ela teria feito se soubesse que Jesus iria morrer. A música também critica o assédio sexual em Hollywood, retratando o abuso de uma atriz que espera entrar num filme: “Man, it’s certainly a look, did she at least get the movie?”. A letra retrata várias ocasiões em que as mulheres são forçadas a limpar a misoginia e as más decisões dos homens, com o verso “It’s a good thing God gave us someone on whom we can depend to clean up”.

A música também discute como as mulheres são usadas para justificar os erros dos homens, com a frase “Man, I hope nobody messes with the wrong rejected men”. O instrumental é vibrante e combina perfeitamente com o tema, tornando-a uma das melhores faixas do álbum. É o tipo de música que se quer ouvir num conversível, com óculos de sol.

A faixa “Josh Tillman and the Accidental Dose” descreve uma “acid trip”, e o instrumental reflete perfeitamente essa experiência. Com um “flow” mais blues e trippy, a música transporta o ouvinte para o estado mental alterado que o cantor está a vivenciar. O som é envolvente e liga-se à ideia da viagem psicadélica, criando uma atmosfera que é ao mesmo tempo caótica e cativante.

Em “Mental Health”, Father John Misty critica a forma como a sociedade nos encaixa em subcategorias, facilitando a venda de produtos através de anúncios personalizados. A ideia de “descobrir-se” é discutida, questionando se a autenticidade que tanto valorizamos não é, afinal, uma construção social. O instrumental é rico, com um saxofone de fundo que acrescenta uma camada emocional à música. Os instrumentos parecem cantar em uníssono, criando uma harmonia que reflete a complexidade do tema.

A faixa “Screamland” é uma crítica ao falso otimismo que permeia a sociedade atual. Tillman simpatiza com aqueles que estão em situações difíceis, como os pobres que jogam raspadinhas ou os “perdedores” que ainda mantêm um sonho. A música humaniza os renegados, lembrando-nos que, antes de serem rotulados pelos seus problemas, são pessoas que podem melhorar, apesar das barreiras sociais. O instrumental é o mais melancólico do álbum, transmitindo o peso dos temas abordados. É uma balada emocional que ressoa profundamente com o ouvinte.

“Being You” liga-se aos restantes temas do álbum, com Father John Misty a refletir sobre a perda de identidade e o desejo de voltar a ser quem era antes. O álbum, como um todo, serve como um lembrete de que há sempre alguém a passar por experiências semelhantes, oferecendo conforto a quem se sinta no fundo do poço. A música é introspetiva e pessoal, com um instrumental que complementa perfeitamente a letra.

A faixa “I Guess Time Just Makes Fools of Us All” discute a inevitabilidade da morte e do envelhecimento, destacando como o tempo nos torna incapazes e hipócritas, sem que tenhamos qualquer controlo sobre isso. A música também critica a forma como os grandes génios trocam o bem comum pelo apoio aos poderosos. O instrumental é elevado por uma quebra na música com um tambor marcante, tornando-a uma das faixas mais memoráveis do álbum.

A última canção do projeto, “Summer’s Gone”, termina com um toque de otimismo, apesar de todo o peso dos temas abordados. A linha final, “But you eat a peach or you skin your knee / And time can’t touch me”, encapsula a condição humana: mesmo sabendo que a morte é inevitável, continuamos a viver, a lutar e a acreditar. O instrumental é suave e melancólico, proporcionando um final adequado para um álbum tão introspetivo.

Cada faixa de Mahashmashana é uma camada que revela novas nuances, tornando-se uma experiência pessoal e introspetiva para cada ouvinte. Father John Misty consegue equilibrar a melancolia com a ironia, a crítica social com a poesia, criando uma obra que é tanto um reflexo da sua carreira como um comentário sobre a condição humana.

O álbum percorre a vida humana do início ao fim, mas também percorre a carreira do artista, com referências a trabalhos anteriores. As músicas são extensas, mas não se arrastam, dizem exatamente o que têm de dizer, sem serem forçadas ou comprimidas. O som é uma mistura de rock com um toque de blues, tornando-o versátil para qualquer ambiente ou circunstância.

Para quem aprecia artistas como Michael Kiwanuka ou Bon Iver, este álbum é uma adição essencial à sua coleção. Mahashmashana não é apenas música, é uma viagem que nos lembra que, apesar da inevitabilidade da morte, o que realmente importa é como vivemos a nossa vida.