Em 2015 a peça de teatro Hamilton: An American Musical estreou na Broadway e era expectável que fosse um êxito. Contudo, ninguém poderia adivinhar que o musical iria virar o mundo do avesso! Uma década depois, Hamilton prevalece uma referência no teatro e noutras artes.

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Esta criação de Lin-Manuel Miranda, inspirada numa biografia escrita por Ron Chernow, é uma master class em escrita e composição. O trabalho apresentado na gravação oficial é exímio.

A excelência deste projeto começa imediatamente nas primeiras notas. Escuta-se o ritmo de uma marcha militar, seguida de uma escala em cordas e do riscar de um disco. Através da melodia de abertura, o ouvinte já sabe aquilo que encontrará à sua frente pelas próximas duas horas e meia: a rap opera mais importante do século XXI, se não da História.

Para além da frase melódica de abertura, são estabelecidos outros motivos musicais para certas expressões, nomes de personagens e temáticas recorrentes. Por vezes, há momentos, como na ponte de “My Shot”, em que os atores “puxam” o ouvinte a cantar com eles, simulando a interatividade de um espetáculo ao vivo. Os projetos de Miranda são conhecidos por incluírem músicas com a sobreposição de diferentes falas cantadas por várias personagens – em Hamilton, o clímax de “Non-Stop” é o melhor exemplo desta técnica.

O musical é quase integralmente cantado. As faixas fluem entre si graças a ótimas transições. Em cada verso as personagens evoluem para melhor ou pior. É por entre as estrofes que a narrativa se desenvolve.

A trama apresentada é envolvente. O primeiro ato (disco 1) reconta a adrenalina de uma revolução. Por outro lado, o segundo ato (disco 2) traz intrigas políticas. Ocorrem reviravoltas chocantes. Estão presentes presságios que anteveem tragédias.

As personagens apresentadas são cativantes. Todas são baseadas em figuras reais distantes no passado. Por mais estranho que possa parecer, ao ocorrer a transladação para a ficção, surgiram personagens extremamente humanas, que cometem erros e têm ideais contrastantes.

Todos os papéis têm importância na narrativa, mesmo que seja só para fins cómicos. Até os elementos do coro e corpo de bailado estão fortemente presentes na história. Destaca-se a personagem comummente chamada “a Bala”, representada na voz de Ariana DeBose e no efeito sonoro de um disparo, uma presença discreta que assombra a trama e simboliza a Morte.

Dez anos depois do lançamento da gravação oficial, continua a haver diferentes interpretações da peça. Ainda ocorrem discussões sobre quem é o verdadeiro protagonista de Hamilton.

A resposta mais óbvia seria Alexander Hamilton (Lin-Manuel Miranda). Ele é o centro por onde tantas canções giram. Os ouvintes têm acesso aos seus pensamentos mais íntimos. Com o desenrolar da trama, os seus sonhos de menino perdem-se e apenas sobrou um homem que trabalha compulsivamente. Alexander acabou por ceder ao peso de ter os olhos da História sobre si e perdeu o renome pelo qual se esforçou.

Então, porque é que não se chama a peça “Alexander Hamilton”? Afinal, até que ponto poderá não ser sobre outro membro com o mesmo sobrenome, como Eliza Hamilton? A única personagem que não teve de cantar a correr, porque o tempo estava a seu favor. A entrega de Phillipa Soo é de uma paixão e intensidade sem precedentes, especialmente na canção “Burn” em que a personagem atinge o seu ponto mais baixo. Eventualmente, Eliza ergue-se e encontra a coragem de permanecer fiel a quem já a magoou. É ela quem encerra o espetáculo no arrepiante e emotivo “Who Lives, Who Dies, Who Tells Your Story”.

Também pode ser que Aaron Burr seja a verdadeira personagem principal. Burr é o narrador e tem o mesmo “tempo de antena” que Hamilton. Temas como “The Room Where It Happens“ ilustram o seu arco narrativo. Ao longo do musical segue caminhos que o levam a tornar-se num vilão. No entanto, a forma como a personagem foi construída e o carisma de Leslie Odom Jr. levam o público a criar empatia com Burr.

Não bastassem as canções insanas e as personagens complexas, Hamilton ainda explora questões profundas. Os ouvintes são levados a pensar e reflectir sobre as mesmas.

É defendido que o sentido da vida está em criar um legado. Só que, ao responder a esta pergunta, surgem outras em torno do termo “legado”, exploradas através das personagens. Burr produz um legado do qual não sente orgulho. Eliza optou por dar continuidade à reputação de todos que amou. Alexander Hamilton escreveu e trabalhou non-stop, para no final não saber se alcançou o que desejava. Seja o que for que conseguiu, séculos depois, fez com que a sua história tivesse sido contada numa biografia, a qual inspirou um jovem nova-iorquino a escrever uma peça de teatro fenomenal.

Acompanha-se o nascimento dos Estados Unidos da América, a nação dos livres, onde os sonhos se tornam realidade. Indiretamente, entende-se que é um país que surgiu e ainda existe porque os imigrantes, “they get the job done”. Miranda apresenta a sua interpretação daquilo que os pais fundadores desejavam após a independência e, de forma subtil, leva o público a questionar se estes valores continuam a ser praticados. Se a mensagem era relevante em 2015, atualmente com o atual panorama norte-americano apenas ganhou mais força.

Hamilton não foi um momento, é um movimento. É o magnum opus de Lin-Manuel Miranda. Com Hamilton, o compositor conseguiu reclamar a atenção do olhar da História e o seu legado será contado pelas gerações vindouras.

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